Camões, Eliade e uma tentativa de filosofia da cultura

Adamastor, de Jorge Colaço

Publiquei o texto seguinte em 2015, num blogue hoje fechado. Qual era o nome da página? Ou era O degredado, ou Alefbetarium, ou O cruciverbalista disléxico, ou Doze Palavras… Aí eu lançava a ideia do projeto que estou lançando (falo um pouquinho dele depois do texto). Claro que muito mudou na minha cabeça desde então e, se mudou, foi por causa da leitura concentrada no poema e na investigação de alguns dos problemas que apresento aí:

Uma das fantasias que guardei da época em que frequentava as histórias em quadrinhos é a da Biblioteca dos Sonhos, do Sandman (Neil Gaiman e vários desenhistas). E permanece como um símbolo útil para mim. Trata-se de um lugar onde se coletam livros jamais escritos, como Alice no lado escuro da lua, de Lewis Carroll. Se me fosse possível ser guiado para lá por Abel (aquele, o filho do primeiro casal e primeira vítima de todas, e vizinho desta biblioteca), um dos livros que eu procuraria seria o Camões, uma tentativa de filosofia da cultura, de Mircea Eliade. O romeno, que ousou dedicar a vida a descrever o percurso religioso de toda a história da humanidade, prometeu dar à luz este livro, mas morreu sem tê-lo feito. Temos alguns indicativos do que esta obra seria em seu ensaio Camões e Eminescu.

No texto, Eliade fala dOs Lusíadas de um modo como pouco se viu -- e menos se vê -- por escritores de língua portuguesa: enquanto obra espiritual. Segundo ele, o ex-soldado Camões criou significados superiores a geografias e experiências anteriormente classificadas como bárbaras, fazendo ver nelas valores universais que antes não possuíam. O mar profundo, o oriente recém-conhecido, as belezas femininas morenas: "a transformação dum nível cósmico em objeto de contemplação artística não é um fato que interesse apenas à história da arte", diz. No Medievo e na Renascença, essas duas temporalidades em que o ponto de inflexão está alegorizado na passagem dos navegantes pela figura do Gigante Adamastor, a criação era um gesto espiritual, e é assim que Mircea Eliade via, no século passado, a arte.

O fascínio por essa epopeia conduziu Eliade para um esboço de filosofia da cultura, expandindo o significado do que até então se entendia por mentalidade latina. Costuma-se ainda compreendê-la como um monolito em que valores de equilíbrio, claridade e  harmonia formavam uma unidade tensa e austera, como o olhar do Davi de Michaelangelo. Logo o Davi!, que era ímpeto puro, senso agudo de improviso e amor descontrolado pelas mulheres e por Deus. Qualidades que temos, percebam, nos Lusíadas. A emoção provocada pela beleza camoniana ajudou a Eliade a compreender que em toda cultura existe a tentativa de equilibrar conflitos e contradições internas, e que o específico do gênio latino é a capacidade de transformar em gestos e artes as diversidades, as diferenças, as alteridades, podendo mudar de caráter e de vivência sem, no entanto, esquecer seus valores mais profundos. Camões é um dos pontos mais altos desse gênio.

Está aí uma forma de falar de literatura que é a que me interessa. A criação como ato espiritual. Uma operação que se inicia fora do tempo e vem para fecundá-lo, libertando as possibilidades que estavam em germe na realidade. Não é preciso dizer que não se encontra tal visão de literatura na universidade. E nem é preciso rasgar as vestes por isso. O espírito sopra onde quer.

Em 2017, junto ao Instituto Valor e Verdade do amigo André Lisboa, dei um Mini-curso sobre Mitologia e História em Os Lusíadas, primeira abordagem dessa perspectiva. Nos anos seguintes houve uma tentativa malograda de mestrado explorando o tema, mas num recorte do local que o imaginário medieval da ordem de cavalaria ocupa no poema. No momento inauguro o Projeto 12Palavras de estudos das relações entre espírito e cultura retomando o tema, numa perspectiva mais ampla, com o curso Desvendando a Narrativa Iniciática dOs Lusíadas. Falarei mais nas próximas cartas, porém já pode ser comprado até o dia 07 de maio por R$ 127,00 (depois sobe para 197,00), podendo parcelar neste link, onde tem mais informações sobre o que é o curso. A primeira aula ao vivo será em 14 de maio, terça à noite, e ficará disponível numa plataforma com acesso vitalício.

Você também pode ser um benfeitor de nosso trabalho fazendo uma doação via Livepix. Com sua ajuda, nossas pesquisas poderão seguir independentes.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *